RESUMO
O presente artigo visou
analisar os aspectos constitucionais e legais dos procedimentos de fiscalização
aduaneira da Alfândega do Brasil atinentes aos despachos de cargas com suspeita
de fraude, especialmente no tocante à retenção das mercadorias durante o
procedimento. Foram analisados tanto a doutrina quanto a jurisprudência
correlatas. Pudemos concluir que a proibição da liberação com garantia de
mercadorias no curso de Procedimentos Especiais Aduaneiros, ainda que em
hipótese de fraude, conflita com o ordenamento e fere garantias das pessoas
físicas e jurídicas.
Palavras-chave:
alfândega brasileira, procedimento de fiscalização aduaneira; suspeita de
fraude; retenção de mercadorias.
1. O PROCEDIMENTO ESPECIAL
DE FISCALIZAÇÃO
A Medida Provisória
2158-35/01, é ainda a base para o procedimento que, visando combater a atuação
das importadoras – conhecidas por Tradings – como fachada a
sonegadores do Fisco, assim dispôs:
Art. 68. Quando
houver indícios de infração punível com a pena de perdimento, a mercadoria
importada será retida pela Secretaria da Receita Federal, até que seja
concluído o correspondente procedimento de fiscalização.
Parágrafo
único. O disposto neste artigo aplicar-se-á na forma a ser
disciplinada pela Secretaria da Receita Federal, que disporá sobre o prazo
máximo de retenção, bem assim as situações em que as mercadorias poderão ser
entregues ao importador, antes da conclusão do procedimento de fiscalização,
mediante a adoção das necessárias medidas de cautela fiscal.
...Art. 80. A Secretaria
da Receita Federal poderá:
I - estabelecer
requisitos e condições para a atuação de pessoa jurídica importadora por conta
e ordem de terceiro; e
II - exigir prestação de
garantia como condição para a entrega de mercadorias, quando o valor das
importações for incompatível com o capital social ou o patrimônio líquido do
importador ou do adquirente.
Para instrumentalizar a
fiscalização a Secretaria da Receita Federal editou em 25 de setembro de 2002 a
Instrução Normativa de nº206 que previu a figura de um Procedimento Especial de
Controle Aduaneiro, vejamos:
Art. 65. A mercadoria
introduzida no País sob fundada suspeita de irregularidade punível com a pena
de perdimento ou que impeça seu consumo ou comercialização no País, será
submetida aos procedimentos especiais de controle aduaneiro estabelecidos neste
título.
Parágrafo único. A
mercadoria submetida aos procedimentos especiais a que se refere este artigo
ficará retida até a conclusão do correspondente procedimento de fiscalização,
independentemente de encontrar-se em despacho aduaneiro de importação ou
desembaraçada.
...Art. 69. As
mercadorias ficarão retidas pela fiscalização pelo prazo máximo de noventa
dias, prorrogável por igual período, em situações devidamente justificadas.
Parágrafo único. Afastada
a hipótese de fraude e havendo dúvidas quanto à exatidão do valor
aduaneiro declarado, a mercadoria poderá ser desembaraçada e entregue mediante
a prestação de garantia, determinada pelo titular da unidade da SRF ou por servidor
por ele designado, nos termos da norma específica. (negritamos)
Depois, já em 21 de
outubro de 2002, a Instrução Normativa de nº228 foi publicada, regulando o
agora denominado Procedimento Especial de Fiscalização e fazendo a seguinte
proibição:
Art. 7º Enquanto não
comprovada a origem lícita, a disponibilidade e a efetiva transferência, se for
o caso, dos recursos necessários à prática das operações, bem assim a condição
de real adquirente ou vendedor, o desembaraço ou a entrega das
mercadorias na importação fica condicionado à prestação de garantia, até a
conclusão do procedimento especial.
§ 1º A garantia será
equivalente ao preço da mercadoria apurado com base nos procedimentos previstos
no art. 88 da Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, acrescido
do frete e seguro internacional, e será fixada pela unidade de despacho no prazo
de dez dias úteis contado da data da instauração do procedimento especial.
(negritamos)
Todos os institutos já
mencionados foram referendados pelo Decreto 6759 de 5 de fevereiro de 2009,
vejamos:
Art. 794. Quando houver
indícios de infração punível com a pena de perdimento, a mercadoria importada
será retida pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, até que seja
concluído o correspondente procedimento de fiscalização (Medida Provisória no
2.158-35, de 2001, art. 68, caput).
Parágrafo único. O disposto
no caput será aplicado na forma disciplinada pela Secretaria da Receita Federal
do Brasil, que disporá sobre o prazo máximo de retenção, bem como sobre as
situações em que as mercadorias poderão ser entregues ao importador, antes da
conclusão do procedimento de fiscalização, mediante a adoção das adequadas
medidas de cautela fiscal (Medida Provisória no 2.158-35, de 2001, art. 68,
parágrafo único).
Nas Alfândegas dos
principais portos e aeroportos do país foram criados órgãos de fiscalização
denominados SAPEA – Seção de Procedimentos Especiais Aduaneiros, cuja
finalidade precípua é realizar combate às fraudes aduaneiras.
A seção é responsável
por fazer o “gerenciamento de risco”, coordenando atividades de prevenção
e combate às fraudes em matéria aduaneira e identificando e avaliando pessoas
físicas ou jurídicas que participem de atividades aduaneiras – função de
inteligência – bem como lhe cabe realizar o Procedimento Especial Aduaneiro, ou
seja, análise documental, conferência de cargas e demais apurações destinadas a
“verificar elementos indiciários de fraude nos despachos aduaneiros”.
Ficam sujeitas às
apurações por meio do Procedimento Especial as condutas suspeitas de
irregularidades puníveis com pena de perdimento, a mais severa prevista às
infrações à legislação aduaneira.
São as situações
consideradas, conforme o juízo do Auditor da Receita Federal, suspeitas de
falsa classificação fiscal, suspeitas de falsa informação de preço, suspeitas
de infração de propriedade industrial, suspeita de não atendimento de norma
técnica, suspeita de interposição fraudulenta de terceiro, entre outras.
Os trabalhos de
apuração, pela forma que a Receita dá ao chamado Procedimento Especial, não se
desenrolam em uma sequência de atos acessíveis às pessoas investigadas, mas, ao
contrário, tramita em sigilo.
O Procedimento
transcorre de forma unilateral, em procedimento inquisitorial, ou seja, sem a
participação do investigado na produção e coleta das provas.
A empresa ou pessoa
natural recebe uma singela intimação para apresentar documentos no SAPEA da
Alfândega onde estiver sua carga, sendo notificada então da instauração do
Procedimento.
Não se dá ao investigado
acesso aos documentos, laudos, relatórios ou declarações, muito menos se
permite que dos trabalhos da fiscalização sejam extraídas cópias reprográficas,
pois, como informam os Auditores, o caráter dos trabalhos é sigiloso e não há
ainda um Processo Fiscal.
Nem mesmo às pessoas
investigadas ou seu advogados constituídos são prestadas informações sobre o
andamento das apurações, limitando-se os Fiscais a solicitar que a parte
aguarde a conclusão dos trabalhos que se dará com a notificação final,
geralmente pelo auto de infração e aplicação de penalidade.
Vale lembrar que o
atendimento das intimações, para prestação de informações acerca da gestão das
empresas, dos negócios e contratos celebrados para aquisição das mercadorias,
apresentação de documentos da sociedade, dos sócios e, não raro, das empresas
estrangeiras, é de cumprimento obrigatório, inclusive no prazo fixado pelo
Auditor da Receita Federal, impondo-se multa no valor de R$5.000,00 por
descumprimento.
Durante este período os
Fiscais solicitam cópias e verificam os estatutos de todas as empresas
envolvidas no despacho sob análise (alterações de contratos sociais,
integralização do capital subscrito, v.g.), as informações sobre as
pessoas dos sócios e representantes legais das empresas, histórico das empresas
no comércio internacional (freqüência das importações/exportações, valor dos
negócios, características das cargas,v.g.), livros fiscais, recolhimento
de tributos nas operações no mercado interno, capacidade econômica das empresas
e dos sócios, destinação/origem das mercadorias, valor das mercadorias, e muito
mais.
Está entre as medidas
apuratórias a verificação de dados, inclusive com a previsão de quebra de
sigilo bancário e fiscal não só das pessoas envolvidas no negócio jurídico
relativo ao despacho aduaneiro analisado, mas de terceiras pessoas que, a
critério do Agente do Fisco, importem nas apurações.
Muitas vezes, os Agentes
do SAPEA fazem lançar no sistema interno de informações da fiscalização
observações acerca das empresas investigadas, chamadas de “note”. Tais
medidas, bem como a proibição de trânsito aduaneiro que impede a transferência
das cargas para outra unidade de Alfândega no território nacional, podem
significar a retenção de todas as cargas de uma importadora, em qualquer porto
ou aeroporto do País.
Tudo isto baseado em uma
mera suspeita, ao arbítrio do Agente do Fisco que pode sujeitar ao Procedimento
Especial, inclusive, a importação por ele considerada atentatória à
moral e aos bons costumes! (INSRF 206/2002, inciso IV, artigo 66)
2. O
PROCEDIMENTO E O ORDENAMENTO JURÍDICO
2.1. Características
da Atuação do Fisco
Por particularidade
própria de sua formação, geralmente oriundo dos cursos de ciências contábeis,
economia ou afins, o agente do Fisco detém visão tendente a um pragmatismo
estreitante e não se dá a discutir a adequação sistêmica das normas utilizáveis
em seus afazeres.
Não é comum encontrar,
no âmbito da fiscalização tributária, aqueles que se arrisquem a questionar as
leis tributárias e seus regulamentos, pois estariam prejudicando, seriamente,
seu futuro na instituição ao se desviarem dos ditames de seus superiores
hierárquicos, editores de tais normas.
À bem da verdade, quando
a norma instrumental exigir interpretação ou integração, dos agentes do Fisco
não se deve esperar alguma que se distancie dos interesses econômicos da
Fazenda Nacional.
No tocante à
imparcialidade do agente do Fisco na aplicação das normas tributárias merece
citação o festejado mestre Kiyoshi Harada (HARADA, 1998, pág. 321):
Nem toda a legislação
infraconstitucional sobre a matéria é compatível com a inovação trazida pela
Carta Política de 1988 que, pelos incisos LIV e LV, do art. 5º, institui,
respectivamente, e de forma expressa, o princípio do devido processo legal e os
princípios do contraditório e da ampla defesa, no âmbito do
procedimento administrativo.
É que, se os órgãos
administrativos julgadores estiverem subordinados aos órgãos fiscalizadores e
arrecadatórios de tributos, por mais que se pregue a teoria da insubmissão do
agente público, investido na função de decidir, ao princípio da hierarquia, não
há como deixar de reconhecer a perda de sua autonomia, mesmo porque, sua
designação para o posto, bem como sua permanência, estará sempre na dependência
de avaliação pelo escalão superior. (negritamos)
A eficiência de um ARF
ou mesmo de um Setor da Fiscalização se mede pela quantidade de autuações e
pelo volume de divisas arrecadadas.
Seria de demasiada
candura presumir que na aplicação de normas tributárias os representantes do
Fisco venham a atuar com moderação, temperando os interesses arrecadatórios do
Estado com os direitos e garantias dos contribuintes.
É da natureza da função
que exercem a busca pela denominada eficiência administrativaque,
segundo Hugo de Brito (MACHADO, 2008, pág. 56), “em matéria tributária
consiste na realização da atividade de tributação de forma a propiciar o máximo
resultado, vale dizer, a maior arrecadação”. (negritamos)
Todavia, o distinto
autor lembra que este atuar não deve ferir o bem comum e que a norma é
instrumento de realização deste fim “com o mínimo de sacrifício para os
contribuintes”. Assim, o agir do Fisco deve estar balizado nos “demais
princípios jurídicos, em especial nos princípios da legalidade e da isonomia”.
Tais limites ao poder de
tributar existem porque nas relações de tributação “se contrapõe de um lado
o interesse do Estado enquanto pessoa jurídica de Direito público, arrecadadora
de tributos, e do outro o interesse do contribuinte” e, por isto, “não é
razoável admitir que o Estado está atuando na defesa do interesse público”
(Machado, 2008, pág. 76).
O Estado, quando Fisco,
age não como protetor de todos os seus administrados, mas se opondo às
pretensões destes como parte, opondo seus interesses, não raramente, contra
todo um segmento da sociedade.
2.2. O
Imperativo do Due Process of Law
Previsão constitucional
insculpida no artigo 5º, incisos LIV e LV da Constituição Federal, o princípio
do Devido Processo Legal, obrigatório também na esfera administrativa, garante
que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal”.
Assim, por clara
imposição da Carta Política vigente, cujo especial destinatário é o legislador,
não se pode autorizar, ainda que por meio de lei, a violação a direito de
propriedade do indivíduo sem lhe assegurar o direito de defesa.
Neste sentido, qualquer
ato do Poder Público que, mesmo provisoriamente, afaste de qualquer pessoa –
natural ou jurídica e não somente o cidadão brasileiro – o seu direito à
propriedade, deverá ser realizado em um processo, onde a ampla defesa poderá
ser exercida pelos meios e recursos que dão forma ao contraditório.
Por este princípio não
se pode consentir com a retenção de mercadorias do administrado em mero
procedimento – sigiloso e unilateral – pois inconstitucional.
E é oportuno que aqui se
invoque o Princípio da Proporcionalidade, corolário do Direito Administrativo
que limita a atuação do Estado, protegendo os direitos fundamentais da
desarrazoada ação administrativa.
Pois, conforme ensina
Alexandre de Moraes, (MORAES, 2003, pág. 369) “o que se exige do Poder
Público é uma coerência lógica nas decisões e medidas administrativas e
legislativas, bem como na aplicação de medidas restritivas e sancionadoras”,
já que a Administração não pode agir de forma exagerada, sem prudência
ao impor obrigação ou restringir direito, aviltando o equilíbrio entre os
interesses do Estado e os dos particulares.
E cita o Ministro Gilmar
Mendes, que agora copiamos pelo brilhantismo da explanação:
O requisito da
necessidade ou da exigibilidade (Notwendigkeit oder Endforderichkelt)
significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia
igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos. Assim,
apenas o que é adequado pode ser necessário, mas o que é necessário não pode
ser inadequado. (IBID.) (negritamos)
É, portanto, um dever da
Administração agir, sempre, de forma adequada ao fim que busca e,
principalmente, utilizando-se de meios que não signifiquem prejuízo de
grandes proporções aos administrados.
Claramente, a privação
de bens ainda no curso de procedimento especial aduaneiro é medida preparatória
da aplicação da pena de perdimento de mercadoria, a mais grave de todo o
ordenamento tributário.
E, a se considerar o
decurso do longo prazo do procedimento reveste-se de verdadeira antecipação da
sanção.
Vejamos que a autora
Vera Lúcia F. Ponciano (PONCIANO, 2008, pág. 427) afirmou: “é preciso que
a autoridade decline expressamente os motivos da fundada suspeita para início
do procedimento, uma vez que a retenção das mercadorias constitui ônus
excessivo para as empresas”. (negritamos)
É mesmo deveras onerosa
a medida, especialmente por que, no decurso de até meio exercício fiscal (180
dias), a retenção de mercadorias faz, especialmente às empresas importadoras,
inviabilizar a própria atividade empresarial, impondo aos investigados
prejuízos de monta decorrentes da falta de insumos ou de maquinários
necessários à produção, indisponibilidade de estoque para entrega de
mercadorias, penalização civil por descumprimento de contratos, além da quebra
do fluxo de caixa, atraso da folha de pagamento, impontualidade perante os
fornecedores e prestadores de serviço, a priori.
Na realidade da economia
brasileira, com tamanha concorrência e com tanta dificuldade à administração
das empresas, em um mercado onde o custo do capital é um dos mais caros do
mundo, é seguro afirmar que uma empresa que passe meio ano com seus bens
retidos na Alfândega, terá seu futuro seriamente ameaçado.
Há ainda o reflexo da
dimensão material do princípio, denominado substantive due process of
law, que, nas palavras do ministro Celso de Mello, também citado por Moraes
(Op. Cit., pág. 370), “reside na necessidade de proteger os direitos e as
liberdades das pessoascontra qualquer modalidade de legislação que se revele
opressiva”, sendo que o Estado “não dispõe de competência para
legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando com seu
comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção”.
(Pleno do STF – Adin. nº1.158/AM) (negritamos)
Por este indelével
aspecto do princípio constitucional, nenhuma lei poderá criar obrigações
exageradas, desproporcionais aos fins juridicamente aceitáveis à Administração
Pública, prevenindo assim eventuais desvios e abusos dos mandatários do Poder.
2.3. Garantia
da Reserva Legal
A edição de normas
infra-legais, tais como Decretos, Resoluções, Instruções Normativas e Portarias
se fundamenta no denominado Poder Regulamentar da Administração, que tem afunção
de dar fiel execução às leis.
Esta limitação, gravada
no inciso IV do art. 84 da Carta Magna, conduz o Presidente da República – ou o
seu representante – que “não pode estabelecer normas gerais criadoras de
direitos e obrigações, por ser função do Poder Legislativo. Assim, o
regulamento não poderá alterar disposição legal, e tampouco criar obrigações
diversas das previstas em disposição legislativa” (MORAES, 2003, pág.
1234).
Neste sentido, “o
exercício de competência fiscalizadora por órgão da Administração Pública está
vinculado aos limites da lei outorgante. Essa lei deve ser considerada não
apenas por sua natureza material, mas também formal, em interpretação estrita,
eis que se trata de norma limitadora de direitos e disciplinadora de
atividades, não podendo ser substituída por resoluções ou outros atos análogos”
(TRF4 – 1ª T. REO nº 89.04.01351/RS – Rel. Rubens R. Hadad Viana). (IBID, pág.
198) (negritamos)
Vejamos o que consta do
Código Tributário Nacional:
Art. 99. O conteúdo e o
alcance dos decretos restringem-se aos das leis em função das quais sejam
expedidos, determinados com observância das regras de interpretação
estabelecidas nesta Lei.
Reitera o principio da
Reserva Legal o Decreto nº37 de 1966, base da atuação da Alfândega, nestes
termos:
Art.94 - Constitui
infração toda ação ou omissão, voluntária ou involuntária, que importe
inobservância, por parte da pessoa natural ou jurídica, de norma estabelecida
neste Decreto-Lei, no seu regulamento ou em ato administrativo de caráter
normativo destinado a completá-los.
§ 1º - O regulamento e
demais atos administrativos não poderão estabelecer ou disciplinar obrigação,
nem definir infração ou cominar penalidade que não estejam autorizadas ou
previstas em lei.
É isto que resta ainda
da leitura do inciso V, do art. 97 do CTN que reserva exclusivamente à lei em
sentido formal, “a cominação de penalidades para as ações ou omissões
contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas”.
3. ANÁLISE
SISTÊMICA DA RETENÇÃO
Ora, se não pode o
regulamento criar obrigação, a contrario sensu, não pode restringir
liberdade, não pode limitar direito previsto em Lei!
Pois é exatamente isto
que faz a INSRF nº206/02, no art. 69, § único, quando extrapola o comando legal
da já citada MP 2158-35/01, a qual não deu tratamento gravoso a casos de
mercadorias com suspeita de fraude para proibir sua liberação mediante
garantia.
A norma que previu a
retenção cautelar para apuração de infração punível com pena de perdimento,
abarcou todas as possíveis infrações, inclusive aquelas que a Receita chama de
“fraude”, e outorgou à SRF disciplinar as situações para entrega com
garantia, sem diferenciar tratamento aos casos em apuração.
É claro que cabia ao
regulamento dispor sobre os requisitos formais para a pretensa liberação com
garantia, tais como lavratura de termos, valoração e modo de garantia,
documentação exigível e outros.
Mas tanto quanto a MP
2158-35/01, o Decreto 6759/09 não outorgou à SRF o poder de restringir o direito
à liberação com garantia.
Ao contrário,
assegurando o direito à liberação com garantia, atribuiu ao órgão do Ministério
da Fazenda o dever de disciplinar o seu exercício, não podendo a norma
complementar da Medida Provisória restringir o direito nela previsto,
negando-lhe a esta ou aquela situação.
Ademais, nem mesmo a
medida Presidencial estaria apta a macular a garantia constitucional do Direito
de Propriedade combinado com o Devido Processo Legal, pois que, enquanto ato do
Poder Executivo está inteiramente submetido às leis e, consequentemente, à
constituição.
O Poder Judiciário
precisa estar atento para o fato de que a Administração Tributária, na ânsia de
nutrir de recursos a dispendiosa e inchada máquina governamental, vem criando
ou ressuscitando normas com contornos ditatoriais.
Pois, como fez Folloni
(FOLLONI, 2006, pág. 93), indaga-se: “subsistiria essa prática autoritária
de apreender previamente produtos sem o devido processo constitucional, de
julgar como bem entende a regularidade da apreensão e em instância única em um
Estado Democrático de Direito?”.
Aqui exatamente é que me
imponho pedir vênia para discordar da brilhante Desembargadora Federal Vera
Lúcia (PONCIANO, 2008, pág. 428), pois que, se a medida de retenção de
mercadorias, como asseverou a autora, “tem natureza cautelar administrativa,
com o objetivo de garantir eventual aplicação da sanção final (pena de
perdimento)” a liberação das mercadorias não oferece risco de
frustração de aplicação da pena diante de garantia do valor dos bens.
Como consta da ementa da
3ª Turma do TRF3 nos autos da Apelação em Mandado de Segurança
2001.61.04.006153-4 (Rel. Juíza Fed. Conv. Eliana Marcelo, 14.2.2007):
A apreensão de bens pela
autoridade é justificável em determinadas situações e por prazo determinado,
desde que imprescindíveis para o seu posterior desembaraço, como, por exemplo,
para serem periciadas, destinadas a uma correta valoração ou, ainda, no caso de
conhecimento de fato ou da existência de indícios que requeiram a necessidade
de sua verificação. (http://www.trf3.jus.br/acordao/verrtf2.php?rtfa=63308284381390,
Acesso em:6.4.2010.)
Não há, portanto,
fundamento lógico razoável para impedir que os bens sejam entregues ao seu
importador, que, após depositar o valor da garantia ou assegurar o seu
pagamento, continuará respondendo às intimações da fiscalização e prestando
todas as informações a que esteja obrigado, submetendo-se ao processo cabível e
à eventual sanção que lhe seja aplicável ao final.
E, não se esta
defendendo a liberação, ainda que com garantia, de produtos com vícios
intrínsecos!
Necessária é a prévia
Verificação Aduaneira, que constatará não só a regularidade dos valores
atribuídos à carga, mas também a inexistência de riscos dos produtos à Ordem de
Consumo (prazo de validade, normas de segurança do INMETRO e outras),
cumprimento das exigências de outros órgãos quando for o caso (licenças prévias
da Vigilância Sanitária, Ministério do Exército, p.ex.) e ainda não serem
produtos proibidos (entorpecentes, descartes radioativos) ou falsificados.
Este, aliás, é o claro
alcance que se deve extrair do texto da MP 2158-35/01 e agora do Decreto
6759/09 onde constam “as situações em que as mercadorias poderão ser
entregues ao importador”!
As normas citadas deram
à Secretaria da Receita Federal a atribuição de regular a liberação, visando
resguardar tanto os interesses fazendários quanto a regularidade perante outros
interesses coletivos, como a saúde pública, a livre concorrência, segurança
pública e outros.
Mas a MP 2158-35/01 não
dá à autoridade administrativa, como não poderia fazer no sistema prestigiador
da lex stricta, o poder de limitar garantias constitucionais.
Vale citar ainda o art.
2º da lei 9.784/99, Lei Geral do Processo Administrativo, onde consta:
A administração Publica
obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade,
proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório,
segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos
processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
I – atuação
conforme a lei e o Direito; (negritamos)
Como aponta André
Folloni (Op. Cit., pág. 95), aí está insculpido o Princípio da Juridicidade da
Administração que impõe a aplicação da lei de acordo com todo o ordenamento
vigente e não com base na interpretação literal da norma.
É importante lembrar
ainda que, havendo necessidade para a apreensão do real conteúdo do texto
legal, conforme preconiza o art.112 do CTN, a lei tributária – somente lei em
sentido formal – que define infrações ou lhe comina penalidades interpreta-se
da maneira mais favorável ao acusado.
Justamente agora se
mostra de relevo trazer à luz a revogada Portaria nº30 de 25.02.2005 do MF que
regulava em detalhes as funções dos SAPEAs – já sob a égide da MP 2158-35/2001
e das IN nº206 e nº228 de 2002 – pois naquele ato da autoridade administrativa
conviviam harmonicamente, no artigo 209, as competências para “combate às
fraudes aduaneiras”, “retenção e apreensão de mercadorias” e “exigência
de garantias” (incisos I, III e V).
Isto bem revela que o
texto da MP 2158-35/01, repetido pelo Dec.6759/09, não impede a liberação de mercadorias
em caso de apuração de fraude.
Sendo o combate à fraude
a única matéria de que tratam os SAPEAs, não teria sentido prever a exigência
de garantia para os casos de sua competência não fosse a liberação das
mercadorias um direito do importador.
Claro restou, segundo o
próprio Ministério da Fazenda através de portaria de 2005, que cabe a liberação
de mercadorias mediante garantia, a ser fixada pelos próprios SAPEAs, nos
procedimentos para apuração de fraudes aduaneiras.
Podemos assim afirmar
que a restrição “afastada a hipótese de fraude” do artigo 69 da IN
206/02 não foi acidentalmente omitida na IN 228/02, posterior àquela e que
disciplina os procedimentos de verificação das operações de comércio exterior e
“combate à interposição fraudulenta de pessoas”.
Ora, se a IN 228/02, ao
disciplinar a apuração de interposição fraudulenta permite a liberação com
garantia – artigo 7º e parágrafos – não persiste a restrição da IN 206/02, pois
que o ulterior ato normativo implicitamente revogou-a!
4. CONCLUSÃO
Como resultado da
analise aqui realizada, em esforço honesto de contextualização da proibição da
liberação de mercadorias apreendidas no curso de procedimento para apuração de
despacho aduaneiro com suspeita de fraude, podemos, seguramente, afirmar que tal
instituto é ilegal.
Como demonstrado, a IN
nº206/02 da SRF, em seu art.69, § único, inadvertidamente restringe o direito
de oferecimento de garantia previsto nas normas reguladoras de hierarquia
superior em caso de típica insubordinação executiva.
A previsão do referido
ato da Secretária da Receita amplia limitação ao direito à propriedade e ao
devido processo legal, criando mecanismo opressivo e desnecessariamente oneroso
ao administrado (contribuintes ou responsáveis), em flagrante ofensa à
razoabilidade dos atos administrativos.
A medida de retenção
prévia de mercadoria, aceitável apenas em situações excepcionais e justificadas
em ato público e devidamente motivado, não pode persistir em mero procedimento,
impondo a imediata instauração de processo administrativo.
A liberação das
mercadorias mediante garantia, mesmo em caso de suspeita de fraude, édireito
público subjetivo do administrado e à Receita Federal cabe, em prazo
razoável, – dez dias úteis nos termos do §1º do art. 7º da IN nº228/02 –
realizar a verificação, a valoração da carga e a fixação da caução.
Esta leitura exegética
não é apenas resultado de dedicada interpretação e integração da legislação
tributária, mas também protege, equilibradamente, tanto os direitos dos
administrados quanto os interesses da Fazenda Nacional.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
FOLLONI,
A. P. A hermenêutica histórica e o processo de dano ao erário: em homenagem a
José Souto Maior Borges. Raízes Jurídicas, Curitiba, p. 77-100,
jan/jun 2006.
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MACHADO,
H. D. B. Processo Administrativo Tributário: Eficiência e Direitos Fundamentais
do Contribuinte. In: CAMPOS, M. (COORD.), Direito Processual Tributário.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
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Edição. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
PONCIANO, V.
L. F. Sanção Aplicável ao Subfaturamento na Importação: Pena de Perdimento ou
Multa? In: VAZ, P. A. B.; PAULSEN, L.; (ORGANIZ.) Curso Modular de
Direito Tributário. Florianópolis: Conceito, 2008. p. 419/445.
Extraído do Blog Direito Aduaneiro
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