Tratei do
tema falsificação de B/L neste outro post. O artigo
teve grande repercussão e, por esse motivo, decidi dar continuidade ao assunto,
porém, dividindo o espaço com dois conceituados advogados.
Recebi
algumas mensagens provenientes de agentes de cargas e armadores que passaram
pelos mesmos problemas. Em uma delas, um armador informou que fez vários
investimentos em segurança adotando, por exemplo, Bs/L com marca d água oculta,
que somente pode ser observada com o uso de aparelhos infravermelhos, lupa,
etc.
Além de
investimentos, os armadores também passaram a adotar modos operantes mais
rígidos para liberação das cargas, no sentido de obrigar consignatários,
importadores e despachantes a se dirigirem até as agências marítimas para
apresentar os Bs/L originais. Somando-se ao fato de que somente os armadores
têm o privilégio de bloquear o “frete armador” no SISCARGA, o que impede a
saída da carga do recinto alfandegado, não seria um erro afirmar que as
empresas de navegação estão conseguindo se blindar.
Então,
atualmente, as grandes vítimas desses crimes, além dos exportadores
estrangeiros, são as empresas NVOCC`s e seus agentes de carga no Brasil. O
motivo é bem simples: Não possuem o privilégio de bloquear o “frete armador” no
SISCARGA.
O que pode ser mudado, para que todos players possam ficar protegidos dessa
prática criminosa? É uma solução técnica ou jurídica? Quais os crimes e as
penas previstas na legislação brasileira? Estas e outras serão respondidas
nesse artigo.
Uma Abordagem geral sobre o B/L, procedimentos e a sua falsificação (por Dr.
Luiz Henrique Oliveira)
O
conhecimento de embarque ou “bill of lading” é o documento mais importante da
navegação, tornando-se um instrumento com múltipla função, servindo como um
contrato, recibo e título de crédito (sua posse equivale à posse das
mercadorias que descreve).
No Brasil, o conhecimento de embarque permanece regulado pelo Decreto 19.473,
de 1930 (ato normativo primário em vigor). Quase um século antes da criação do
referido Decreto, o Código Comercial Brasileiro, em seus artigos 575 e
seguintes (ainda em vigor), já estabelecia o que o conhecimento pode ou não
conter.
Assim, mesmo que a Aduana pretendesse substituir inteiramente o “bill of
lading” pelo conhecimento eletrônico, é certo que uma instrução normativa não
poderia revogar um Decreto com status de lei (tendo sido recepcionado como
tal). Daí a importância desse documento, cuja via original deve ser sempre
apresentada no ato da retirada das mercadorias pelo importador e, assim,
devidamente conferida pelo recinto alfandegado.
Existem
casos, porém, em que o exportador, desconfiando do comportamento doloso do
importador, acaba por reter as vias originais do conhecimento, solicitando ao
transportador a retenção física da mercadoria no terminal portuário. Ao tomar
conhecimento de que o importador não detém a posse da via original do B/L, o
transportador passa a reter a posse das mercadorias.
Em defesa do
transportador, aplica-se a regra da exceptio non adimpleti contractus, ou
exceção do contrato não cumprido (art. 476 do CCB), uma vez que o importador,
antes de cumprida sua obrigação (apresentação do b/l original), não pode exigir
o implemento da obrigação do transportador (entrega das mercadorias).
Nesses
casos, o agente marítimo promove o bloqueio automático no SISCARGA na tentativa
de impossibilitar a retirada da mercadoria pelo importador. É aí que residem os
problemas: Um deles se dá pelo fato de que o sistema possibilita o bloqueio
somente ao agente marítimo (representante do armador), e não ao agente de
cargas (representante do NVOCC), que não possui acesso a tal dispositivo.
Assim, nos embarques realizados por empresas NVOCC`s, não é possível o bloqueio
automático das mercadorias no SISCARGA, ficando o agente de carga totalmente
desamparado. Outro problema é que o sistema possibilita o bloqueio das
mercadorias apenas na hipótese de falta de pagamento do frete. Na prática, a
IN800/2007, em seu artigo 40, reproduziu o texto do artigo 7º do Decreto
116/67, dispondo que é facultado ao armador determinar a retenção da mercadoria
em recinto alfandegado, até a liquidação do frete devido ou o pagamento da
contribuição por avaria grossa declarada.
Acontece que
na maioria dos casos de falsificações de Bs/L, o importador também realiza o
pagamento do frete ao transportador, não cabendo, em tese, a justificativa para
a retenção da mercadoria por falta de pagamento do frete, o que tem sido objeto
de calorosas discussões. Ao constatar a retirada indevida das mercadorias pelo
importador, o transportador (seja ele armador ou NVOCC) poderá, através de seu
agente no destino, providenciar o registro de um Boletim de Ocorrência,
comunicando tal fato às autoridades competentes.
Além de
demonstrar a boa fé do transportador, a lavratura do Boletim de Ocorrência
poderá salvaguardar seus interesses na hipótese de eventual ação de perdas e
danos movida pelo exportador. Logo, não se poderia cogitar em negligência do
transportador, uma vez que o resultado do ilícito exorbita a previsão do homem
mediano.
Na verdade,
o ideal seria que o SISCARGA possibilitasse o bloqueio em situações que não
somente aquela prevista (falta de pagamento do frete), facilitando seu amplo
acesso aos agentes marítimos e agentes de carga. Portanto, caberá à Receita
Federal (RFB) não só o desafio de adaptar a legislação aduaneira às necessidades
do comércio exterior brasileiro, mas também de aprimorar o SISCOMEX CARGA para
fazer valer o seu propósito de instrumento controlador.
Uma abordagem criminal sobre a falsificação de B/L (por Dra. Marília Bonavides)
Pela
Instrução Normativa da Receita Federal de nº 800/2007, que instituiu o novo
sistema, todo o tramite de importação de mercadoria e desembaraço alfandegário
está informatizado. Todas as etapas estão previstas no programa. Desta maneira,
ficou salvaguardada a tributação para a Receita Federal, o que constitui um
importante avanço, porém a divulgação da senha (nº CE-Mercante) no sistema
facilitou, ao importador desonesto, falsificar o B/L e conseguir liberar a
carga sem pagar o exportador, ou seja, o novo sistema deixou vulnerável a
segurança do negócio e a credibilidade do Brasil no comércio exterior ficou
ameaçada. São necessários alguns ajustes para sanar esta lacuna.
A luz do
Direito Penal, em uma análise superficial, identifica-se, de imediato, a presença
de 02 tipos penais: o estelionato, art. 171 e a falsificação, art. 296 ambos do
CP. No entanto, pela legislação convencional, o crime de falsificação é
absorvido pelo crime de estelionato. O estelionato absorve a falsidade quando a
falsificação for o meio fraudulento utilizado para a prática do crime-fim, que
é o estelionato. O Superior Tribunal de Justiça sumulou essa orientação, nos
seguintes termos: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais
potencialidade lesiva, é por este absorvido” (Súmula 17).
Na Parte
Especial do Código brasileiro, no Título II, Dos Crimes Contra o Patrimônio,
mais especificamente no capítulo VI, estão elencados os tipos criminosos do
Estelionato e outras fraudes. Diz o Código em seu art. 171:
- “Obter,
para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou
mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio
fraudulento:
Pena – reclusão, de 1(um) a 5(cinco) anos, e
multa.”
O sujeito
ativo do crime pode ser qualquer pessoa que induz a vítima a erro, empregando
artifício ardil ou qualquer outro meio fraudulento, podendo configurar também,
facilmente, o concurso eventual de pessoas, como a co-autoria e participação.
No pólo passivo, na qualidade de vítima, também pode ser qualquer pessoa. No
caso em tela quem suporta o prejuízo da ação é o exportador, que não recebe o
valor da mercadoria e sofre a lesão patrimonial. Deve-se destacar que pode
haver mais de um sujeito passivo. Neste crime o bem jurídico protegido é o
patrimônio.
Consuma-se o crime quando o autor obtém a vantagem econômica indevida em
prejuízo de outrem. É perfeitamente admissível no crime de estelionato a forma
tentada, basta à tentativa comprovada para que o autor seja punido.
A comunicação do fato criminoso deve ser feita, via de regra, na delegacia da
Polícia Civil, à autoridade policial, em Boletim de Ocorrência, pela vítima ou
seu representante. O foro competente é o local do crime.
A Ação Penal
para este crime é pública incondicionada, ou seja, cabe a Justiça Pública,
através do Promotor de Justiça, processar o autor do crime, não necessitando da
manifestação de vontade da vítima.
A pena
restritiva de liberdade e multa é a imposta pelo Estado através do Direito
Penal, depois do devido processo legal e, exalada em sentença condenatória
transitada em julgado.
Conclusão
Por não ser
tratar de uma pratica recente, os transportadores marítimos já tomaram as suas
providências e conseguiram diminuir bastante o seu nível de exposição. Agora,
as autoridades aduaneiras brasileiras precisam pensar nos NVOCC`s e em seus
agentes. O ramo do agenciamento de cargas cresce, mundialmente, ano após ano e
é responsável pelo transporte de milhões de toneladas de cargas.
Da mesma
forma, seria interessante que as autoridades permitissem bloqueio no SISCARGA
por outros motivos também relevantes, e não somente o que gira em torno do
pagamento do frete e demais despesas inerentes ao serviço de transporte
marítimo.
É importante que os NVOCC`s e em seus agentes busquem as autoridades e exijam o
privilégio do bloqueio no SISCARGA também. Afinal de contas, para o desembaraço
aduaneiro e para o pagamento de tributos, na prática, não há diferença entre
B/L master e B/L house. Portanto, não faz sentido um ter privilégio de bloqueio e o outro
não.
Por fim,
vale ressaltar a importância do registro das ocorrências policiais como forma
de se resguardar das perdas e danos advindas da prática de falsificação de B/L
e também como forma de fazer com que os criminosos respondam pelas suas
condutas.
* André de
Seixas é diretor comercial do Grupo IRO-LOG LOGISTICS & TRADING;
Idealizador e coordenador da Coluna Direito em Foco da Revista Guia Marítimo;
Comissário de Avarias e regulador de sinistros. Contribuíram Luiz Henrique
Oliveira, do escritório LH Oliveira Advocacia (lawadv@uol.com.br) e Marília Gallotti Bonavides, do escritório Gallotti Bonavides
Advogados Associados (mariliabonavides@yahoo.com.br)