quarta-feira, 3 de julho de 2013

Capatazia não pode ser incluída no imposto de importação

A apuração do valor aduaneiro, base de cálculo do Imposto de Importação, é — e sempre foi —, objeto de grande preocupação do governo brasileiro, tendo em vista, principalmente, a função extrafiscal desse imposto relacionada à política cambial e comercial.

Por isso mesmo, cada dia mais as operações de importação e exportação vêm sendo submetidas a procedimentos rigorosos de fiscalização, pautados por numerosa e esparsa legislação, sujeita a interpretações divergentes pelos aplicadores do direito no âmbito do comércio exterior (aduana, contribuintes e judiciário).

Nesse contexto, torna-se imperioso a adoção de um maior rigor técnico na interpretação das normas jurídicas que regulam as relações entre aduana e contribuinte, sob pena de se estabelecer um ambiente de insegurança jurídica nas relações, inclusive comerciais, entre Brasil e outros países, o que além de prejudicial à economia nacional viola os compromissos assumidos pelo governo brasileiro perante a comunidade internacional no que concerne à transparência e higidez na fiscalização e no controle aduaneiro das operações.

Nesse cenário, verifica-se que tem sido comum, em muitos portos do Brasil, a prática da Receita Federal de exigir dos importadores a inclusão dos gastos com a capatazia na base de cálculo do Imposto de Importação, sob o fundamento de que esses gastos integrariam o valor aduaneiro e seriam, por sua vez, passíveis de tributação.

Soma-se a isso o fato de que, para exigir a inclusão da despesa com capatazia na base de cálculo do mencionado tributo federal, a Receita Federal do Brasil, muitas das vezes, utiliza-se de expediente tão antigo quanto odioso, e, de forma coercitiva, deixa de desembaraçar a mercadoria importada até o recolhimento da diferença apurada dos tributos federais, em decorrência do não recolhimento do valor referente à capatazia e de outras despesas similares, o que causa inúmeros prejuízos aos importadores.

Assim, a questão que se pretende responder e que será detidamente analisada abaixo é a seguinte: existe embasamento jurídico para a Receita Federal exigir a inclusão da despesa com capatazia na base de cálculo do Imposto de Importação?

Por definição, o serviço de capatazia consiste na “atividade de movimentação de mercadorias nas instalações de uso público, compreendendo o recebimento, conferência, transporte interno, abertura de volumes para a conferência aduaneira, manipulação, arrumação e entrega, bem como o carregamento e descarga de embarcações, quando efetuados por aparelhamento portuário.”[1]

Assim, o valor de capatazia refere-se a gasto destinado à categoria dos estivadores, normalmente pago ao agente de carga/marítimo em decorrência da movimentação de cargas nas embarcações atracadas em portos brasileiros. Na prática comercial, tal serviço é indispensável ao funcionamento dos portos e ao transporte das mercadorias importadas, consistindo em despesa importante do setor.

Nos termos do artigo 2° do Decreto-Lei 37/66[2], artigo 75 do RA/09[3] e artigo 20, II do CTN, a base de cálculo do Imposto de Importação é o valor aduaneiro da mercadoria, apurado segundo as normas do artigo 7º do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT) de 1994, atualmente em vigor pelo Decreto 1.355/94[4].

O artigo 1° da Parte 1 do mencionado Acordo estabelece que sempre que a operação de importação resultar de uma operação comercial de compra e venda[5], o valor aduaneiro de mercadorias importadas será o valor real da transação (método do valor da transação), isto é, o preço efetivamente pago ou a se pagar em uma venda para exportação no país da importação. A esse valor, o artigo 8° do Acordo permite que sejam realizados ajustes como o acréscimo do valor do frete, seguro, fornecimento de bens e serviços, entre outros (no mesmo sentido dispõem também os artigos 9° e 11° da IN 327/2003[6]).

Com efeito, o artigo VIII, item 2, alíneas “a” e “b”, da Parte II do GATT permite que cada país possa incluir ou excluir, livremente, do valor aduaneiro, os gastos com movimentação e manuseio de carga incorridos até a chegada da mercadoria no porto do importador, in verbis:

“2. Ao elaborar sua legislação, cada Membro deverá prever a inclusão ou a exclusão, no valor aduaneiro, no todo ou em parte, dos seguintes elementos:

(a) – o custo de transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação;

(b) – os gastos relativos ao carregamento, descarregamento e manuseio, associados ao transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação; e

(c) – o custo do seguro.”

O Brasil, por sua vez, optou pela inclusão dos referidos gastos para fins de determinação do valor aduaneiro, nos termos do artigo 77 do Regulamento Aduaneiro (Decreto 6.759/2009):

“Art. 77. Integram o valor aduaneiro, independentemente do método de valoração utilizado (Acordo de Valoração Aduaneira, artigo 8, parágrafos 1 e 2, aprovado pelo Decreto Legislativo 30, de 1994, e promulgado pelo Decreto 1.355, de 1994; e Norma de Aplicação sobre a Valoração Aduaneira de Mercadorias, Artigo 7º, aprovado pela Decisão CMC 13, de 2007, internalizada pelo Decreto 6.870, de 4 de junho de 2009):

I – o custo de transporte da mercadoria importada até o porto ou o aeroporto alfandegado de descarga ou ponto de fronteira alfandegado onde devam ser cumpridas as formalidades de entrada no território aduaneiro;

II – os gastos relativos à carga, à descarga e ao manuseio, associados ao transporte da mercadoria importada, até a chegada aos locais referidos no inciso I.”

Com base em interpretação deveras ampliativa das normas acima, a Receita Federal do Brasil passou a considerar que os gastos com os serviços de movimentação e manuseio de mercadorias prestados nos portos brasileiros devem ser considerados para fins de mensuração do valor aduaneiro. Veja-se o entendimento externado na Solução de Consulta 1, de 3 de Janeiro de 2005:

“IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. BASE DE CÁLCULO. PREÇO NORMAL. DESPESAS DE CAPATAZIA.

O conceito de preço normal, a qual se refere o artigo 20, inciso II, do CTN não destoa, antes se harmoniza com o artigo VII, item 2, alíneas “a” e “b” da Parte II do GATT. Não cabe para base de cálculo do imposto importação a adoção de valor fictício. Despesas com capatazia devem ser computadas para fins de determinação do valor aduaneiro da mercadoria.”

Esse entendimento decorre também do Ato Declaratório COANA 003, de 07 de janeiro de 2000, que não diferencia, para fins de composição do valor aduaneiro, o momento em que esses gastos são efetuados pelo importador:

“Os gastos relativos à descarga e ao manuseio de mercadorias importadas, associados ao transporte internacional, integram o valor aduaneiro, independentemente da responsabilidade pelo ônus financeiro e da denominação adotada.”

Ocorre que a linha de interpretação adotada pela Receita Federal do Brasil não considera o importante “corte temporal” constante no o artigo VIII, item 2, alíneas “a” e “b”, da Parte II do GATT e incorporado pelo artigo 77 do Regulamento Aduaneiro. De acordo com esse dispositivo, apenas as despesas incorridas até a chegada do bem no porto devem ser incluídas no valor aduaneiro (parte final do inciso II), o que exclui, obviamente, as despesas realizadas após o recebimento dessas mercadorias.

Portanto, em conformidade com a norma jurídica que disciplina a matéria (artigo 77 do Regulamento Aduaneiro e artigo VIII, item 2, alíneas “a” e “b”, da Parte II do GATT), as despesas com movimentação de cargas a serem consideradas pelo importador na composição do valor aduaneiro são apenas aquelas incorridas no porto de origem e, eventualmente, durante o transporte da mercadoria (transbordo, arrumação, remanejo, etc), o que, por outro lado, exclui os eventuais gastos incorridos entre a chegada da mercadoria no porto brasileiro (atraque da embarcação no porto de destino) e o seu desembaraço aduaneiro.

Outro entendimento, além de violar notoriamente o limite de ordem cronológica imposto pelo GATT, relativo à inclusão de certos gastos e despesas no valor aduaneiro da mercadoria (transporte e movimentação de cargas), imputaria na base de cálculo do imposto de importação, quantum relativo a serviços que estão naturalmente fora do âmbito da competência tributária da União.

Em outras palavras: os serviços que compreendem o recebimento, conferência, abertura de volumes para a conferência aduaneira, manipulação, arrumação e entrega, bem como o carregamento e descarga de embarcações, atracadas em portos brasileiros, estão no campo tributável pelos municípios, através do imposto sobre serviços (ISS), nos termos do artigo 156 da CF, ao passo que os impostos incidentes sobre importação de mercadorias são de competência da União, nos termos do artigo 153 da CF. Consequentemente, os gastos com tais serviços não podem ser incluídos na base de cálculo do imposto de importação, sob pena de, assim o fazendo, estar a União tributando riqueza diversa do que lhe foi outorgada pela CF, invadindo a competência tributária municipal.

Assim, além de violar as regras de ajuste no valor aduaneiro autorizadas pelo GATT, ao exigir a inclusão dos gastos com capatazia na base de cálculo do imposto de importação, a RFB está incorrendo em inconstitucionalidade, pois deixa de observar elemento que compõe o alicerce da ordem constitucional tributária do direito brasileiro, qual seja, a repartição da competência.

Diante dessa discrepância entre a disciplina legal pátria e sua aplicação pelos agentes da RFB nos casos submetidos à sua apreciação, a questão já foi levada ao Poder Judiciário (TRF-4) que, conforme se depreende da ementa abaixo, reputou ilegal a prática de incluir na base de cálculo do Imposto de Importação os gastos incorridos após a chegada da mercadoria nos portos brasileiros:

“TRIBUTÁRIO. VALOR ADUANEIRO. DESPESAS INCORRIDAS APÓS A CHEGADA AO PORTO. INSRF 327/2007. ART. 8º DO ACORDO DE VALORAÇÃO ADUANEIRA. Decreto 4543/2002. A expressão “até o porto” contida no Regulamento Aduaneiro não inclui despesas ocorridas após a chegada do navio ao porto. A Instrução Normativa SRF 327/203, extrapolou o contido no art. 8º do Acordo de Valoração Aduaneira e 77 do Decreto nº 4543, de 2002.” (TRF 4ª Região, APELAÇÃO CÍVEL Nº 2008.72.08.000577-3/SC, DOU 04/06/2010).

Em desfavor do acórdão supramencionado foi interposto Recurso Especial ao STJ (REsp 1.239.625) que, desde 26/07/2012, encontra-se concluso ao Ministro Relator Benedito Gonçalves para apreciação (espera-se, por óbvio, que o Superior Tribunal mantenha o entendimento adotado pelo tribunal de origem).

Portanto, a conclusão inarredável sobre a matéria é de que se configura latente a ilegalidade perpetrada pela Receita Federal ao exigir a inclusão de despesas incorridas após a atracação da embarcação em portos brasileiros como os serviços de recebimento, conferência, abertura de volumes, manipulação, arrumação, carregamento e descarga de embarcações, na base de cálculo do Imposto de Importação.

Por último, no que tange ao procedimento adotado pela Receita Federal, de condicionar o desembaraço aduaneiro da mercadoria à inclusão do valor pago a título de capatazia na base de cálculo do Imposto de Importação, há de se destacar que o Supremo Tribunal Federal, através da Súmula 323[7], já reconheceu que a cobrança de tributo por via oblíqua pela Fiscalização configura verdadeira sanção política e é inadmissível no Estado Democrático de Direito.

Assim se afirma porque, ao negar o direito da empresa de discutir na esfera administrativa a base de cálculo dos tributos federais incidentes sobre a importação, a Fiscalização estará contrariando as determinações do artigo 142 do CTN e ofendendo os princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal, obrigando a importadora a se submeter à regra do solve et repete, a qual está totalmente fora dos estritos contornos da legalidade.

Dessa forma, se a autoridade fiscal está convicta que os gastos com capatazia devem ser incluídos no valor aduaneiro — o que já vimos, contraria a legislação federal que rege a matéria — o único meio que dispõe a Fiscalização para exercer a sua cobrança de forma legítima é a lavratura de auto de infração, com a consequente liberação das mercadorias através do desembaraço, não sendo possível interromper o despacho aduaneiro e condicionar a sua continuidade à inclusão dos gastos com capatazia na composição do valor aduaneiro.

Portanto, com base nos fundamentos acima expostos e em síntese conclusiva, são bons os argumentos jurídicos aptos a sustentar o entendimento no sentido de que os gastos relativos ao transporte internacional de mercadoria e movimentação de carga a serem incluídos na base de cálculo do imposto de importação são aqueles incorridos até a chegada do bem no porto brasileiro.

Consequentemente, as despesas com serviços relativos à movimentação, conferência, arrumação de carga, entre outros, prestados após a atracação da embarcação em portos brasileiros, estão naturalmente fora do âmbito de incidência do imposto, ficando seu tratamento tributário definido pela legislação interna dos entes federativos (União, estados, município e Distritos Federal), nos limites da competência tributária de cada um, rechaçando-se, do mesmo modo, qualquer possibilidade de a Receita Federal condicionar o desembaraço aduaneiro da mercadoria à inclusão do valor pago a título de capatazia na base de cálculo do imposto de importação.

[1] Art. 57 da Lei 8.630/93 (Lei dos Portos)

[2]Art.2º – A base de cálculo do imposto é:

I – quando a alíquota for específica, a quantidade de mercadoria, expressa na unidade de medida indicada na tarifa;

II – quando a alíquota for “ad valorem”, o valor aduaneiro apurado segundo as normas do art.7º do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio – GATT. Grifamos

[3] Art.75 – A base de cálculo do imposto é:

I – quando a alíquota for específica, a quantidade de mercadoria, expressa na unidade de medida indicada na tarifa;

II – quando a alíquota for “ad valorem”, o valor aduaneiro apurado segundo as normas do art.7º do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio – GATT. Grifamos

[4] Art. 1º A Ata Final que Incorpora os Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT, apensa por cópia ao presente decreto, será executada e cumprida tão inteiramente como nele contém.

[5] IN RFB n° 327/03 Art. 8º O método do valor de transação somente será utilizado quando a importação resultar de operação comercial de compra e venda que implique transferência internacional efetiva das mercadorias.

[6] Art. 9º O valor de transação é o preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias, em uma venda para exportação para o país de importação, ajustado de acordo com as disposições desta Instrução Normativa.

Art. 11. Constituem parcelas integrantes do preço efetivamente pago ou a pagar os custos relativos:

I – a atividades ligadas à comercialização da mercadoria importada, como propaganda, garantia e promoção de vendas, empreendidas pelo comprador em benefício do vendedor ou por conta deste, para satisfazer parte do pagamento da mercadoria importada, e como condição de venda dessa mercadoria; ou

II – ao fornecimento de bens ou prestação de serviços a terceiro, pelo comprador, por conta do vendedor, como condição de venda da mercadoria importada.

[7] Súmula 323 do STF: “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.”

Rafael Augusto Pinto é advogado no Rio de Janeiro.

Elói Vasconcelos é advogado em Belo Horizonte.

Revista Consultor Jurídico

 

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